O som começa com um berimbau, mas ele logo se
transforma nos pontos eletrônicos que vão compondo a imagem sonora. Os
sons eletrônicos lembram outros instrumentos – estamos escutando uma
sanfona? Ou um Moog? A sétima faixa de Cada Um indica: Tudo mudou, tudo
mudou. E tudo muda: sonoramente e, ainda, propõe uma revolução que parta
do coração. Isso talvez explique a intimidade e a transformação que o
disco Cada Um indica na carreira de Sério Pererê. Transformação aqui não
indica uma mudança de paradigma ou um reinício, mas como as coisas se
transformam, transmutam. E, na carreira do cantor, a mudança é uma
constante importantíssima. A marca percussiva da carreira de Pererê está
presente, mas de uma forma diferente: a sonoridade sofre mutação e a
força agora vem dos sons produzidos pelo Barulhista e por Richard Neves.
O disco começa com Silêncio Interior, mas que é um
silêncio que se fala ou, melhor dizendo, se fala sobre o silêncio e,
principalmente, sobre a necessidade de contar histórias, a sua história.
No fim das contas, ainda poderei contar histórias, das coisas que vivi,
por onde caminhei. Se a voz começa como um sussurro, ela logo se abre, e
pede que a vida fale e ela fala: se a correnteza é forte, deixa a
correnteza te levar. O existencialismo que marca boa parte das letras de
Sérgio Pererê é demonstrado muito bem aqui: se desloca do ocidente para
si mesmo e daí para o mundo. Existencialismo que não marca a tradição
ocidental apenas, no máximo de esguelha, ganha contorno dos caminhos, do
tempo, do espaço, da gravidade e se configura em uma Casa de Flores: a
dor que eu carregava não sobreviveu.
Cada Um, a faixa que dá nome ao disco, é uma boa
escolha para nomear porque ela apresenta a mistura que, de fato, se
espalha pelo disco: os sons se misturam aos ritmos e vão lembrando uma
gama de instrumentos que é acompanhado por vozes (em frente e ao fundo) e
ainda é contemplado pela língua estrangeira – All I want is just what’s
mine – que se conjuga com o português brasileiro. Algo que vai estar
presente na faixa seguinte, Woman, que, na verdade é Iemanjá, mas que
mistura a sonoridade da palavra mulher em inglês com o Ô Mãe a ponto de
se misturarem. A oração é pedindo ajuda com o medo de navegar na e pela
vida. Mais uma vez, são esses que vieram antes que podem ajudar no
caminho adiante, pelo desconhecido, pelo turbulento; desconhecido que
parecia a direção do disco, mas que o barco não naufraga, pelo
contrário, chega triunfante em uma nova terra: É leve e daí se pode até
voar: Voar é só uma questão de perceber a força que te deixa leve e ter
um sentimento que te leve a encontrar algo que eleve.
Sertão, que fecha o disco, é a canção de sua memória
já que o disco também provoca uma dobra e é, também, um guardião da
memória. Da balada, do beatbox, do rock, do jazz, das jornadas, e tudo,
tudo volta, ao lar, ao jardim, ao cuidado. O sertão, mas que é ser-tão,
ser-tanto, ser-memória, ser-tudo e ser-único.
A composição rítmica de Cada Um é bastante diversa:
unindo praticamente elementos do mundo todo, temos o quase reggae, quase
ska de Inseguro e, além do sol, além do mar, e também temos os
elementos orientais de Mestre Samurai. Neste, ainda apresentam a vasta
gama de ancestrais e figurais míticas que servem de guia e orientação
durante a existência: Meu mestre samurai, como eu cheguei aqui, venci os
temporais e voltei a sorrir? Os mestres, os ancestrais estão neste
panteão, no Caminho do Sol, que canta com Laura Catarina: Meu mestre
mirou, o caminho do sol e lá foi morar. Meu mestre mandou mensagem na
luz que é pra ninguém chorar. Mas ela se apresenta de forma inteira na
belíssima Guardiões da Memória, já que é na memória, no passado, que se
aponta o futuro: Guardiões da memória, cantem sua canção pra mim, parte
dessa história, chegou ao fim. Guardiões da memória cantem uma canção
que nos traga de volta a direção.
Pedro Kalil
Voce ouve tb esse disco nas plataformas digitais .
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