Didi Paracatu
Me sugeriram certa vez que eu fizesse uma música mais "comercial".
Fiquei de pronto a ruminar nas peleias do que se pedia: negociar o
inegociável, fazer o que nunca se quis, bulir num veio dágua que foi
fazendo trecho quieto, sozinho, sem regras, num corredor de chão.
Onde guardar os cheiros do mato? Em que vidro aprisionar o aroma único
de terra molhada, com seu condão de evocar saudades? Onde o ondular dos
montes, o quieto dos vales, o convite dos rios, o fresco das veredas, o
pio das codornas poucas, o arrulhar das pombas de revoado pouso? O capim
do campo e o rancho de taipa?
Como apeá-los das canções? E as gentes? Mãos calosas, pouca "letra" e
muito saber, que só abrem prosa e se espairecem, nos cepos de seus
terreiros, ou no adorno da lira de cantadores, povoando os versos das
canções de tantos, como eu?
Enfiei a tal idéia no guardado de uma cabaça, deitei a correr rio
abaixo, ao rumo esquecido dos assuntos que não merecem virar coisas, e
continuo aqui, teimando cantorias, enquanto Deus quiser querer.
Biografia, ou um naco de minhas andanças musicais
Toda biografia, deve ser incompleta pra ser
boa, pois ao escreve-la a vida segue caminho a trote, fazendo-se
impossível prender-se o tempo na gaiola do tudo dizer. Vida não fica
mansa, dócil, quietinha.
Resumindo, quero que nasci prosador, imaginador de mundos, queredor de
coisas que a correria dos dias faz deixarem esquecidas no canto das
lembranças.
Me dá certeza de ter que contar nos modos de um cantador, das entranhas e
raízes do meu lugar, Paracatu, seu cerrado, seus agrestes e bichos
matreiros, das chuvas que vão ficando alheias, da pobreza rica do
matuto, seus termos, mil histórias e outras tantas estórias.
Nasci em Paracatu, infância no bairro Santana, que tomo de empréstimo a
muitas canções. Bairro de negros, um quase quilombo, com muita beleza e
que só se deixa ler a quem for de lá ,ou se achegar bem pertinho, pra um
café de coador. Viver no Santana era viver no berço dos sorrisos
amigos, das mil alegrias que eram capazes de engolir tristezas, que
teimassem em por a cara de fora, nas gretas das meias folhas das janelas
de lá
Filho de criação de Sr. Honório e dona Lúcia, amado mais, por não ter
sido e querido sempre da parentela outra, doadora das vertentes
musicais, por certo, e feliz, de toda banda!
Nos primeiros lampejos musicais, lembro-me de Fofó, gravado nas
lembranças da infância, executando comigo ao colo, com maestria
impecável, choros de Pixinquinha, Valdir Azevedo, Jacó do Bandolim, Luiz
Americano e outros, que mais tarde, adulto, ao ouvi-los, não me foram
estranhos ao registro da memória.
Coisa de não se esquecer, foi o meu pai Honório, executando em um violão
com cordas de aço - não existiam as de nylon - assentado no "rabo" do
fogão a lenha, com seus sabidos poucos acordes, mas firmes e
harmoniosos, e minha mãe, bem perto a ele, entoando canções em duo de
terças - hoje sei -, de canções de Cascatinha e Inhana, coisas que nem
querendo, se furtam do recordar.
Depois, os belos hinos dos corais, quartetos, orgãos e solistas na
Igreja Presbiteriana, me apresentando a Bach, Handel, Felix Mendelsohn,
Beethoven, onde adolescente, as lágrimas me vieram ao ouvir o "Largo" da
Ópera "Xerxes" de Handel, pelo tenor Otávio Pinheiro e em outros
momentos, os solos do baixo profundo de Lucas Silva, meu irmão, com
d.Ester Tillmam ao órgão, momentos que me elevaram ao céu, de onde não
quis mais sair, mesmo aqui. Mais tarde, lá toquei violão, dirigi corais,
formei quartetos e outros grupos, tudo com uma alegria que só Deus e a
música proporcionam.
O mundo se abria, mesmo no limitado universo provinciano. Vieram o ver e
o ouvir, a banda Euterpe e Lira Paracatuense, com seus magistrais
dobrados, e os desfiles de 7 de setembro, onde os alunos do Colégio
Estadual daqui, passaram, ao ritmo da fanfarra, assobiando o tema do
filme "A ponte do rio Kwai", um deslumbre que foi desenhando as ricas
nuanções de uma musicalidade iniciante. Os LPs, trazidos de Brasilia-DF
por Davi Barbosa, que inovavam os gostos musicais e nos apresentavam a
Baden Powell, Chico Buarque, Milton Nascimento, Edu Lobo, Tom Jobim e
tantos outros.
As sanfonas toscas nas danças de quadrilhas no Santana, as rodas de
música com Mazin e João César, a guitarra gestual de Tassim, os
improvisos de Picolé, um músico andarilho que por aqui passou, sem
contar os tantos Festivais da Canção, ricos celeiros por onde desfilavam
os melhores representantes de nossa música brasileira de então, e que
incentivaram o unir do violão solista, pelo qual sempre primei, às
letras que descobri compor.
Depois, pelas conspirações maravilhosas do destino sabido por Deus, de
férias em Belo Horizonte-MG, visitando a loja de instrumentos "Musical
Strambi" tive o privilégio de ter sido adotado, mais uma vez,
musicalmente, pelo grande maestro, arranjador e violonista Nelson Piló,
de quem guardo um chorinho inédito até hoje, dedicado a mim, com quem,
numa maratona de necessidade, aprendi ler música em uma semana, tempo
que dispunha antes de retornar a Paracatu, ao fim das férias, o que fiz,
mas já com um pacote de partituras musicais, generosamente doadas e
escolhidas por ele, com o compromisso de retornar no outro ano, -o que
foi cumprido-, com todas "na ponta dos dedos".
Nesse esticar das cordas do violão, dei de avançar nos estudos e
ingressei na primeira turma da recém inaugurada e primeira cadeira de
violão clássico no Brasil, na UFMG, criada pelo professor José Lucena
Vaz, e aí, vieram ao acervo das lidas musicais, Villa Lobos, novamente
J.S.Bach, Leo Brower, Abel Carlevaro, Guerra Peixe, as Masterclass de
violão com Amilcar Inda, Noé Lourenço, as maravilhosas aulas de
composição com Mário Ficarelli, as bisbilhotagens no coral Ars Nova, com
o maestro Carlos Alberto Pinto Fonseca, profundo na arte coral e
generoso com quem queria aprender. Os cursos de férias na Fundação
Musical, canto com Eladio Peres e tantos!
De quebra, os saraus musicais na casa da Tia Nilda, onde desfilavam,
toda noite, na voz de todos e em especial de "G"e Helena esta, belíssima
mezo-soprano, samba, bossa, chorinho e canções, ali, num terreiro de
piçarra, vizinho ao Morro do Chapéu, que recebia minhas visitas para
tocar Garoto, Baden Powell, Dilermando Reis, Armando Neves e outros e
ouvir incontáveis choros nos dedos professores do negro Trisquê ao
violão com outros cobras, tais como Luiz, irmão e Helena e o Sr.
Balbino, perito no repertório de Luiz Bonfá.
Dessas lembranças tantas e andanças outras, resto eu, minhas cantorias,
meu violão, sem alarde, no querer de aprendedor. Um disco, que é
pertinente a esta biografia,"Quintal das memórias" primeiro trabalho
gravado no Zen Estúdio, em Brasilia DF, produzido por Tarzan Leão, um
Hino a Paracatu e ao Santana Esporte Clube, e novos trabalhos que serão
lançados brevemente, permitindo Deus.
Ocupo com muita honra a Cadeira 29 da Academia de Letras do Noroeste de
Minas, que por tramas do existir, tem como patrono o magistral inventor
do Sertão: Guimarães Rosa.
Me alegra, citado em generosos escritores nossos tais como, Oliveira
Melo, Zeca Ulhoa, Tarzan Leão e outros, que ao fazê-lo, expõem mais que a
mim e sim, o lustro de minha terra e minha gente, assinalando aos
contemporãneos, e tecendo cada um, com suas agulhas de escrever,
memórias de se guardar na tulha.
Assim, como biografia para ser boa deve ser incompleta, sinal de que se vive e inda se quer fazer,
Didi
CD QUINTAL DAS MEMÓRIAS – DIDI PARACATU (maravilhoso álbum)
1-
Valsa simples
2-
Lenda das lagoas de Paracatu
3-
Quintal das memórias
4-
Vocabuneiro
5-
Ruas
6-
Modinha de serra
7-
Choro lento
8-
O mato
9-
Conversa de vaqueiro
10- Estrada
do mundo
11- Coco
mineiro
12- Canção
de barqueiro
13- Canto
de senzala
14- Mote
p’ra receber cantado
15- Olhar
do pai
BAIXE ESSE CANTO SAGRADO:
DIDI PARACATU- quintal de memorias- canto sagrado da terra 2.rar